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19-11-2014 12:27

Pagão

 

Quando as notas inaugurais do Concerto número 9 para piano e orquestra soaram a vez primeira no velho sótão da Quintinha sucedeu em mim a comoção súbita e imprevista do ingresso num mundo novo, a mesma que tantas vezes tenho sentido ao dobrar, pela manhã, a derradeira curva de Argéis, quando a pasmosa majestade da baía de Sesimbra se nos oferece ao renovo do espanto.

No estridor do atrito, a vitrola fritava; mas o prato do vinil foi bandeja de iguarias que jamais voltei a degustar. Creio bem que o fulgor imponente de um mito se instaura unicamente nestes instantes primordiais, interstícios inefáveis de um sortilégio insondável, como quando o relâmpago corisca na iminência do trovão. Suspenso além do tempo, o mundo detém-se então; e o raio que o céu assim desfere é uma seta despedida ao coração.

Certo que o sótão da Quintinha não será tão antigo quanto aqui o faço crer ao leitor amigo; mas, nas partidas dobradas pelas contas da minha memória, lanço-lhe agora a crédito a marca austera da etiqueta Erato, o garbo galante e gentil de uma tela rococó com suas raparigas em flor, certo aparato de informes iluminando quem escuta, tudo o que naquela bela capa da editora Dacapo operava harmónico prodígio pelo concerto da vista com o ouvido.

Quando, vai para uns quinze anos, encetei a minha colecção de música erudita em discos compactos, inaugurei-a com uma integral dos Concertos, interpretada e dirigida, a um só tempo, pela verve magiar do magistral Géza Anda, sob a égide selecta da Deutsche Grammophon. Mas são ainda os dedos de Maria João Pires que, na Quintinha, me percorrem as páginas amarelas de uma lembrança já delida pelas horas…

Por estes dias de Inverno que o Setembro bisonho nos antecipou, bem gostaria eu de ter perguntado ao Carlos Otero que lugar ocupa deveras o excelente Jeunehomme no afã devocionário do seu apostolado mozartiano. Mas o Carlos, desta feita, como de tantas outras, veio de fugida, mais por mor de Franz Schubert, que num destes domingos foi celebrar à Regaleira na companhia do pianista Paulo Oliveira; e o almoço fugaz na Baixa lisboeta deixou o ponto por esclarecer.

Tanto quanto sei, o Carlos vai mais pelo Concerto para Clarinete e Orquestra, que não deixa nunca de incluir na sua “missa de Gottlieb”, se é justo que assim nomeie o fervor religioso com que propaga a crença sem quebranto no génio supremo de Wolfgang Amadeus Mozart. Mas o Jeunehomme, nono pelo nove que na lição de Dante revela o novo, é que me enche todas as medidas. Dubitativo embora, Charles Rosen aponta-o como a primeira obra-prima inequívoca do estilo clássico; Brendel, esse monstro das teclas, reputa-o entre as maiores maravilhas que há no mundo; e Alfred Einstein vê nele a Eroica de Mozart, em alusão evidente à Terceira Sinfonia de Beethoven.

No confronto dos génios rivais, o meu coração, claro está, volta a pender para o lado esquerdo. Evoco o divino surdo de Bona logo depois de este saber que Napoleão, traindo a Revolução, se proclamara Imperador. Imagino-o num impulso de cólera, riscando a dedicatória que, na partitura da sua Eroica, havia feito ao corso intrépido, de pronto a substituindo pela acrimónia de um epitáfio mordaz: À memória de um grande homem. Tremendo Ludwig, este! O mesmo que, perante um qualquer príncipe Lichnowski, ousa proferir, no auge da insolência, as célebres palavras imortais: Príncipe, o que és, és acidentalmente por nascimento; o que eu sou, sou por mim mesmo. Príncipes existem e existirão aos milhares, Beethoven há apenas um.

Eis porque entre mim e o Carlos Otero desde cedo se instalou, presa a uma dúvida inquietante, a mais benévola e divertida contenda que imaginar se possa. E, por isso, ainda hoje disputamos, cada qual em seu campo, a primazia do génio para os dois gigantes do nosso contentamento.

Há tempos, quando o Carlos, sempre com vista para a Califórnia, estacionou na Piscosa para a costumada vilegiatura nos meses que abrem o Estio, alvitrei-lhe que este nosso despique poderia muito bem ser visto como mais um daqueles prélios imaginários entre Benfica e Sporting que povoam os domínios da criação artística, e daí que projectasse trazê-lo à liça na crónica do mês passado. Tal como eu benfiquista, logo o meu excelente amigo anuiu ao cotejo; mas torceu o nariz assim que lhe pretendi pintar de verde e branco o seu Wolfgang. Mais ao austríaco do que ao teutão conviria, a seu parecer, o título definitivo de Glorioso

Esqueceu-se, claro está, de uma prova que não saberá agora refutar: não fosse o Núcleo Sportinguista de Sesimbra a emprestar-nos umas quantas cadeiras da sua esplanada, e muita gente teria ficado de pé, sem arredar o dito, naquela tórrida noite de 6 de Julho de 2013 em que, Conversando com Mozart, fez transbordar a Casa do Bispo! Uma entre tantas datas em que o Carlos, dadivoso, tem trazido a Sesimbra a magia mitológica da musa Euterpe...

Indo mais, como vai, pelo trilho do mestre de Salzburgo, este emérito parisiense ancorado na Pedra Alta será, a bem dizer, um pagão, preso àquelas colunas que orgulhosamente resistem de pé por entre as ruínas do tempo, e que o pintor Hubert Robert, primeiro director do Museu do Louvre, tão bem soube dar no lídimo classicismo das suas telas. Vale a pena ir vê-las às Janelas Verdes e ao Museu Calouste Gulbenkian, senhor que as deixou por cá…

Destarte, não admira que o Carlos tenha ido morar para a pacata Rue Vignon – rive droite, claro está! –, no coração do neuviéme, a um passo da Madeleine e a dois das Tulherias, com o Palais Garnier a lembrar, ali bem perto, a pulsão operática da sua carreira artística. E eu, que me converti sem um módico de resistência ao credo jeóvico e tonitruante de Ludwig van Beethoven, porque agora vos escreva pela manhã do Cinco de Outubro, saúdo-o à sombra da Assemblée Nationale, como bom prosélito do culto novo que veio com o Velho Testamento. Faço-o do outro lado da ponte, fincado na margem esquerda da Concórdia que sempre haverá entre nós.

Pagão! Foi Pinto Quartim, insigne plumitivo anarquista, quem, num baptismo de fogo, assim o crismou pelo meado da década de cinquenta em Lisboa. Na verdade, Adolfo Alonso Otero, antes de entrar no Nicola, tinha por hábito incumbir o filho de pagar os cafés tomados na mesa da tertúlia. Impagável, um dia Quartim não se conteve e, para surpresa geral, proclamou, alto e bom som, perante o garçon: - Este é que paga, este é que é o pagão!

Quase nascido com o século em Padrenda, província de Ourense, no rincão saudoso da Galiza, e cedo emigrado, com seu pai, posto a contas com os poderes carlistas, para terras de Vera Cruz, este Adolfo Alonso Otero, cujas veleidades socialistas o levariam a conhecer, aos dezoito anos, o segredo de uma cadeia brasileira, viu-se depois deportado, ainda jovem, para a Ilha da Madeira. Clandestino, dali fugiu, a bordo de um navio, para o continente, terra da promissão onde, durante sessenta anos, irá viver com o falso nome de Carlos Silva. Sob o múnus modesto de alfaiate, ofício que o leva a trocar fatos por esculturas com o depois famoso Hein Semke, persistirá, no entanto, o avançado libertário, o bravo sindicalista, lutando ao lado de um Alexandre Vieira ou de um Carlos Santos pela jornada diária das oito horas de trabalho. No mais, torna-se convivente de Pessoa, Aquilino, Ferreira de Castro, Raul Rego, Ramada Curto, Ruy Coelho ou Silva Pereira, entre tantos outros, sobremaneira se revelando dotado para a arte de Talma, a ponto de representar, numa só noite, no Teatro da Trindade, a trilogia de Raul Brandão, assinada pelo grande Alves da Cunha.   

Corria o ano de 1963 quando o Carlos, refractário ao espectro horroroso da Guerra Colonial, foi de abalada para Paris, levando consigo os genes da grande centelha que ali, subindo a corda a pulso firme, o acompanhariam, num trajecto do maior mérito artístico, como actor, encenador e cantor lírico.

Em Paris, como, de alguma sorte, já aqui sugeri, costumo quedar-me pelo lado esquerdo, na avenida a que o General Leclerc, libertador da cidade nazi, viria a dar o seu nome, ali para as bandas da praça Denfert-Rochereau, sorte de Bastilha no contraponto das margens cujo leão de Belfort, símbolo de resistência, silente no cobre de Bartholdi, qual esfinge dos insurgentes, testemunha a partida das manifestações políticas.

Bruscamente, no Verão do ano passado, fiquei porém com certa demora pela Rue Vignon, em casa do Carlos, onde bem à vista fui encontrar um busto de Beethoven, proeminente no lugar cimeiro que a decoração da sala-de-estar lhe destinara. De Mozart, nem sombra de vestígio…

Quando, triunfal, o confrontei com o sucesso esclarecedor, o Carlos, imperturbável no sorriso luminoso por que sempre a alma lhe toca o olhar, limitou-se a desfiar-me a litania piedosa com que, em Sesimbra, tantas vezes me tem procurado converter:

– Sabes, um dia perguntaram a Rossini qual era para si o maior compositor. E ele respondeu: – Ah, Beethoven, claro está! Perante isto, insistiram: – E Mozart? –Ah, Mozart! Mas esse é o único!!!...

 

Pedro Martins

26-09-2014 11:43

Derby

 

Pendular, a mensagem da Ana Olival chegou há dois dias, pelo correio electrónico, informando-me de que poderia entregar a colaboração para esta edição até ao dia 16 do mês a que respeita, e que é, evidentemente, o Setembro em curso. Confesso que muito me aprazem os seus lembretes proverbiais – aguilhão benévolo com que me espicaça a inércia madraça –, segundo o plano anual de antemão comunicado aos escreventes. Dou-me bem com esta organização de casa arrumada, cartas na mesa, posta para o ágape mensal dos comensais que são os leitores do jornal. E se, porventura, em tempos de porvir, derdes pela minha falta nesta página, desde já sabereis que só a mim, por tardo na entrega, pródigo na extensão ou falho na imaginação, poderá a ausência ser imputada.

Quando o António Marques, para minha surpresa, sorriso nos lábios, câmara em riste, se assomou em Setúbal na tarde de 12 de Abril e, no final da sessão, já nos passos perdidos da Casa da Cultura, me impetrou a voltar à casa de partida, não terei chegado a pestanejar. Só ele o saberá dizer. Face ao imperativo, fi-lo como mandam as regras inclementes do velho Monopoly que, na idade imberbe, nos povoava – a mim, ao António Ladeira e a alguns outros – tardes e serões, entre o sótão da Quintinha e uma garagem na Quintola. Fi-lo, pois, sem receber o estipêndio da passagem, que ao tempo, antes do euro, remontava a dois contos de réis – se é verdade que, como n’As Aproximações sentencia Agostinho da Silva, naquele dia celebrado no Sado, «quanto ao trabalho, é evidente que só se pode fazer bem o que se ama e que repugna à essência mais íntima do homem receber dinheiro por amar». Daí o resplendor da palavra amador, na acepção maior da sua grandeza.

Como Abril é o mês mais cruel – di-lo T. S. Eliot, logo que finca o arado n’A Terra Devastada, em quatro versos onde fulgura, ressoando, a Saudade de Teixeira Pascoaes; redi-lo, sem superlativo, o vate de Gatão, próximo do epílogo do seu Santo Agostinho (comentários) –, a empresa começou sob o signo da urgência, não porque fosse para ontem, mas porque era para o dia seguinte, a entrega da primeira crónica. E, no ápice de uma tarde, porque

 

A pena é irmã da enxada,

A página dum livro é terra semeada,

 

tornei à leira, rasguei estrias cavas na courela pousia, lancei-lhe palavras como quem bota sementes, sulquei regos de tinta – e a planta irrompeu, para pegar de estaca, despontando folha a folha nesta página, que costuma ser a sexta do Raio de Luz.

Sexta é também a crónica que o leitor tem agora entre mãos. Com o equinócio mudou entretanto a estação: na véspera da saída deste jornal, se o agendamento for cumprido.

Escrevo, porém, ao cair o pano sobre o mês de Agosto. A subtil delicadeza da Ana instou-me à factura da crónica; e, por isso, logo pela manhã, tomo de empréstimo o motivo do dia, sem perder de vista o propósito íntimo que em Setúbal adoptara: escrever sempre com Sesimbra por perto, indo embora por esse mundo fora.

Não sei quem levará a melhor no prélio da noite, mas desde já declaro que, nesta porfia entre Benfica e Sporting, o meu vaticínio volta a pender para o lado esquerdo, onde pulsa o coração. Quando, certo dia, há uma década, ou perto disso, indaguei da preferência clubística do padre Sílvio Couto, o então prior de Santiago respondeu-me, peremptório, com uma pergunta terminante: de que cor é o sangue?        

Não escapamos, por mais que o queiramos, ao sortilégio das rivalidades. Vem da noite dos tempos o que em tenra idade se começa. Há dias, no Porto, a minha filha Leonor, tocada de incipiente benfiquismo, insurgia-se, protestando vindicta, contra o leão que, com as patorras, jugula a águia no topo da coluna altaneira, bem ao centro da Rotunda da Boavista. Como é ali diverso, deveras nefasto, o drama do jogo que a alegoria imobilizou na escultura!… 

Foi isto no outro domingo, precedendo este em que agora vos escrevo, e o Glorioso, por sinal, triunfou no Bessa, perante o Boavista. Íamos de rota batida para Tormes, em Santa Cruz do Douro, terras de Baião, onde visitámos a casa de Eça de Queiroz, aquela que, com a edénica majestade da paisagem circundante, tão belamente o inspirou, nos derradeiros anos de vida, a escrever A Cidade e as Serras. A Parca colheu o escritor em Neuilly-sur-Seine, no limiar de Paris, antes que ele pudesse testemunhar o romance à vinda do prelo. E, no entanto, não foi no ninho longínquo da montanha, nem no refinamento sumptuoso de uma urbe imensa, que o diáfano prosador viu a luz do dia a vez primeira. Póvoa do Varzim, onde, de facto, nasceu, e Vila do Conde, onde, dias depois, viria a ser baptizado, ainda hoje lhe disputam, em rijo transe de emulação, o prestígio do berço, que ao baptismo pertence cristãmente o privilégio de um renascimento…

À semelhança de Eça filho natural, coube a Camilo Castelo Branco, seu eterno rival, nascer em Lisboa de mãe sesimbrense, conforme Joaquim Preto Guerra (Rumina) pôde provar, testemunhal e genealogicamente, em 1944, nas páginas d’O Sesimbrense. Como Pascoaes, dois anos antes, afirmara em O Penitente (Camilo Castelo Branco), ígnea biografia que lhe consagrou, foi «por ironia do Destino» que o genial novelista, tão entranhadamente nortenho, veio ao mundo na capital. Porque a terra de ninguém lhe não convenha de todo, façamo-lo agora nosso, arrimemo-lo ao rincão sesimbrense pelo cordão que o prendeu a Jacinta Rosa, desenhando-lhe um vulto de luz à sombra da telha que ela habitou, ali para as bandas de Bombaldes, como de justiça cabe a um filho natural… da Mãe Natureza, já se vê, que a mulher, sobre ser terra, é casa.

Por certo, não estaria Pascoaes, quando escreveu O Penitente, na posse dos informes que Rumina, tempos depois, viria a firmar. Alberto Pimentel, n’O Romance de um Romancista, obra a que o gigante do Marão, sempre meticuloso e exaustivo na preparação das suas biografias, não terá deixado de atender, dá por insegura a ascendência sesimbrense de Camilo, tomando a hipótese por um equívoco, pois que natural da Piscosa fosse outrossim a criada, Carlota Joaquina, que acompanhou o escritor na sua orfandade.

Ironia maior é serem tidos por filhos naturais, aos olhos da época, um Eça e um Camilo, tão sobrenaturais nos prodígios da sua inventiva. A cabaia d’O Mandarim ainda lá está, na vitrina de uma sala de Tormes, convizinha de telas de D. Carlos e de um desenho de Dona Amélia, esses trágicos visitantes de Sesimbra; e à saudade de Jacinta Rosa assina Pascoaes, na escrita tumultuosa de Camilo, a sombra perpétua de um estro merencório. Não é caso único na obra do mestre de Gatão. Também no Santo Agostinho (comentários), livro supremo de 1945, Santa Mónica, mãe do autor das Confissões, de pertinácia decisiva na conversão do filho ao dogma romano, nos surge como o ventre que o vai dar à luz de Deus, depois de o haver dado à luz do sol…

A ascendência sesimbrense de Camilo Castelo Branco é hoje um facto consabido nos meios camilianos. Quando, na véspera da ida a Tormes, estive, por este Agosto de refrigério, na Casa de Camilo, em São Miguel de Seide, ao cabo da visita comentei com o nosso guia, Reinaldo Ferreira, camiliano excelente e insigne, ter o seu patrono a maternal raiz na minha terra adoptiva. Logo a palavra Sesimbra, que eu ocultara, lhe aflorou os lábios! Acto contínuo, mostrou-me um livro onde se dá conta do sucesso, em página ilustrada com a fotografia da morada sesimbrense de Jacinta Rosa, bem esclarecida por minuciosa descrição topográfica da sua localização.    

Nesta rapsódia de contendas, leve Seide a palma a Tormes. Ali, a cada passo, sente-se pulsar, visceral, vibrátil, agónica, trágica, num encantamento intimista de que nos não libertamos, a funda genialidade de Camilo; aqui, certo refinamento blasé do Eça parisiense parece ter-se fatalmente comunicado às paredes austeras de uma casa cujas janelas, sem embargo, dão para o Paraíso. Como se o polimento desmesurado do 202 dos Campos Elíseos houvesse viajado, clandestino, na bagagem de Jacinto.  

Tomo partido, está bem de ver; mas importa sopesar como Eça viu aqui inscrito a débito o costado pexito de Camilo e a evocação sublime que do penitente deixou Teixeira de Pascoaes, tão da minha veneração, e que iremos celebrar, já em Outubro, no Congresso Internacional sobre As Biografias no Pensamento Português dos séculos XIX-XX, por ocasião do 80.º aniversário do São Paulo. E não tem Pascoaes, no confronto inexorável com o rival Pessoa, a quem jamais desmerece, o desfavor da cósmica ascensão deste ao estrelato do orbe? Quem com tudo isto ficou desde já a perder foi o meu pessoano amigo Carlos Otero, que era para vir à baila nesta leva. Aqui estará, assim o espero e desejo, para a próxima, que o António Marques bem protesta, dando-me a saber que, uma vez mais, excedi o espaço prescrito. É no que dá fazer as coisas com tempo… 

  

Pedro Martins

26-09-2014 11:41

Do lado esquerdo

 

– Não recuse o socialismo que há em si. Procure antes o que ele tem de superior… 

Foi assim, quase à queima-roupa, no Rossio de Estremoz, defronte do Café Águias d’Ouro onde escrevera a História Secreta de Portugal e tantas outras laudas da sua obra genial, que António Telmo, surpreendente, me exortou a tentar via, como diria o preclaro Bruno, José Pereira de Sampaio de seu nome, graça a que os leitores amigos se vão já acostumando. Deste último, no parecer de Pessoa o único homem que no seu tempo, em Portugal, mostrava compreender, e portuense ilustre que, na visão mítica de um Augusto de Castro, ao balcão da sua padaria na Rua do Bonjardim, aos Aliados, recebia, humílimo, a insigne, insólita visita de um Dom Miguel de Unamuno (foi, na verdade, esperar o basco à estação ferroviária, para depois com ele conversar no recato do lar), até António Telmo Carvalho Vitorino, o Tó, filho do doutor do Registo que muitos, entre os mais velhos, ainda recordam em Sesimbra, corre uma fieira de nós na corda luminosa das gerações que, da informal Escola Portuense ao movimento da Filosofia Portuguesa, com estação central na gesta da Renascença Portuguesa, procuraram, a cada instante, pensar audazmente os problemas humanos e os segredos da Natureza, os pés firmes como raízes no chão dilecto da Pátria, olhos fitos no mistério do firmamento, onde estrelas lucilam as letras que há no imenso tinteiro de Deus.  

Quando, pelos meus vinte anos, descobri Teixeira de Pascoaes e a sua Arte de Ser Português, logo me maravilhou que ideias como a de Deus, a de Pátria e a de Família, a despeito da concisa homonímia, pudessem ali ser tratadas bem nos antípodas do salazarismo. No breviário pascoalino haveria por certo, interposta, a insuspeição da palavra grandiloquente: Humanidade; mas o jeito arejado com que o vate de Amarante se antecipara a revirar os termos triádicos que o tiraninho de Santa Comba, lustros mais tarde, tornará impraticável por décadas, despiu-me de preconceitos pelo avesso.

Apesar de Sampaio Bruno haver encabeçado a frustrada revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891; e de, no seu livro maior, A Ideia de Deus, protestar mais não ser do que um sectário jacobino (no que aliás, com proverbial modéstia, falta sem mácula à verdade da sua grandeza); apesar de Teixeira de Pascoaes, o heterodoxo impenitente, expressar publicamente, alto e bom som, em 1949 o seu apoio ao candidato oposicionista Norton de Matos; apesar de Leonardo Coimbra, que viera do anarquismo, haver afrontado, enquanto Ministro da Instrução Pública da I República, a anquilosada e retrógrada alma mater conimbricensis de então, ao estabelecer, no Porto, a Faculdade de Letras que, em uma só geração, dará à terra mais antifilosófica do planeta (assim Leonardo se referia a Portugal) a plêiade gloriosa onde pontificam pensadores de escol como Álvaro Ribeiro, José Marinho, Agostinho da Silva e Delfim Santos; apesar de Marinho, por mor de acrisolada oposição ao Estado Novo, se ter visto impedido de aceder ao magistério e, anos a fio, sobreviver, aos baldões, de explicações angariadas pelo prestígio do génio com que iluminava os espíritos; apesar de Álvaro, vindo da Renovação Democrático, primeiro grande movimento de oposição ao Estado Novo, haver passado as passas do Algarve sem nunca porém passar de um modesto emprego como editor do Mensário das Casas do Povo, prestimoso repositório ainda hoje subestimado; apesar de Agostinho da Silva, com indeclinável dignidade e coragem cívica exemplar, no curso da abominável Lei Cabral (que Pessoa, intimorato, execrara em magistral artigo de imprensa) se ter recusado a proclamar perante os áulicos que não era mação nem comunista; apesar de tudo isto, e de muito mais, aquilo a que, com razoável extensão, sói chamar-se Filosofia Portuguesa tem surgido conotado, urbi et orbi, com uma certa ideia político-religiosa a que, por comodidade de expressão, cabe o nome de reacção, ali onde o autoritarismo e o dogmatismo dão as mãos à repressão. 

No entanto, haverá que reconhecer como, adentro da casa de Portugal, em indisfarçada insídia, lavravam os germes malsãos. Cingindo-me ao testemunho pessoal da década exaltante que com António Telmo me foi dado viver, deporei, anónimos, dois casos reveladores de como, ao redor do filósofo, nas suas cercanias, pude colher ventos inquietantes.

A vez primeira que tomei parte da roda convivial, na sequela vespertina de um repasto de caldeirada (estávamos em solo sesimbrense, já se vê!), alguém me abordou com um zeloso panegírico de Salazar, mal ciente, porventura, de que à sua ilharga, tutelar na bravura, mas alheado do dislate, estava o homem que, em 1971, enfrentando, à sombra do campanário, com a barba suspeita de bolchevismo, a intriga de alguns tiranetes provinciais, ousara fundar no Redondo a primeira escola democrática de Portugal.

Anos mais tarde, no decurso de uma tertúlia em Arruda dos Vinhos, onde, com Telmo, revisitávamos o paraíso terreal da sua infância, descobri, com assombro e protesto, como os pederastas insulares, deixados na penumbra do esquecimento devido a um louvor que o maioral da Madeira, intuitu personae, endereçara à Filosofia Portuguesa, eram passíveis de benévola destrinça perante os continentais, de muito mais duvidosa inclinação política. Quando saímos do café, António Telmo acercou-se de mim e disse: – Você tem razão!

Entre muitos outros benefícios, devo-lhe, com efeito, o aviso sério de quão baldada é a progressão no pensamento sem a observância da estrita imparcialidade. Não há mais alta posição no exercício difícil de se ser livre. Exprobrar com justeza um regime caduco como aquele em que hoje vegetamos como pátria e como nação não pode, notadamente, implicar o renovo de uma mordaça que, como freio infamante, foi aposta aos portugueses durante meio século. E a verdade é que escrevo agora estas linhas sem sombra de receio daquelas outras que os lápis azuis outrora traçavam.

Como bem notou Miguel Real, em tempos de plebeísmo foi António Telmo um aristocrata do espírito, em permanente comunhão com o povo, e desdenhando, com íntima solenidade, de uma burguesia de falsete que, em sua irresponsável pulsão juvenil, muito amesquinha quando tudo julga poder comprar. Assistido pela coragem suprema da liberdade, só por si dignidade bastante ao crédito de reverência com que sempre nos interpela, perseguiu Telmo a difícil via crucis de reclamar, a um tempo, à esquerda e à direita da cruz, o direito a afirmar o santo nome de Deus e o de pensar livremente a sua ideia, caminho dos mais estreitos numa terra como a nossa, em que os campos tão extremados se confrontam. Não sem engulhos entre alguns dos mais próximos, fê-lo pelo lado de dentro, desoprimindo no recôndito da alma o costado hebraico soterrado por séculos de labaredas e fumos negros. Tenho para mim que, nele, o marrano haveria por força da dar o cabalista e este o iniciado que, ao revelar publicamente, mais do que a sua condição, o seu pensamento maçónico, pôde mostrar como poucos homens se lhe avantajaram numa vida veramente religiosa.

Com António Telmo, que, pressentindo, com lucidez e argúcia, a elevação do sacerdote, teve a coragem de defender Joseph Ratzinger quando tantos o verberavam no começo do seu pontificado breve, mas germinal, muito gostaria hoje de conversar a propósito deste extraordinário Jorge Bergoglio que a Providência nos designou. Creio que Telmo (que em seus escritos tardios revelava crescente compreensão pela Companhia de Jesus, de onde o Papa Francisco provém) lhe apreciaria o desprendimento frugal, o diálogo franco e exemplar (Skorka, o amigo rabino, evocando o kabbalista Nathan vis a vis com Thomé, o cristão gnóstico, personagens dos diálogos télmicos), a coragem escandalosa de tolher sinecuras, desmandos e perversões, ou a irreverência deposta nos gestos, simples mas autênticos, com que se acerca dos pobres e de quantos sofrem.

Evoco Telmo prestes a completarem-se quatro anos sobre a sua partida, lembrando a sua coragem, a sua autenticidade. Como daquela vez em que, já director da Biblioteca Municipal de Sesimbra, numa recepção a Américo Tomás, tocado de apetite, irrompeu pelo meio da mesa em U aprontada para o banquete oficial, encetando, à revelia dos comensais, a lagosta que dominava a távola. Ao erguer o rosto, com um pedaço na mão, deparou-se o filósofo, à sua frente, com o olhar censório, fulminante, quase patibular do chefe de estado. Não vacilou, porém, este homem incomparável, a quem o astrólogo Hórus, que consultara a instâncias de Rafael Monteiro, predissera, anos antes, ser ele o único capaz de derrubar Salazar. Com um sorriso intrépido, propôs a Tomás:

– Prove. É uma maravilha! Ou não fosse de Sesimbra!...

Foi isto pelo meio da mesa em U. Aqui o recordo. Do lado esquerdo, que é onde pulsa o coração...

 

Pedro Martins

26-09-2014 11:39

Comarca

 

A primeira vez que ouvi o nome do Daniel Pires escutei-o da boca de Manuel Medeiros, esse açoriano improvável que certo dia, há quatro décadas, assentou arraiais nas bandas do Bonfim para se tornar o decano dos livreiros em Setúbal. No Outono passado, quando os plátanos se despiam no Parque adiante, o velho Medeiros foi no encalço das folhas, deixando-nos com a idade de 77 anos, na extrema austera da dilação jovial que a revista Tintin assinava aos seus leitores. Apraz-me evocá-lo assim, soltando mitos nas vinhetas, preso ao fascínio imberbe que soletra as tiras nos balões, porque Medeiros, sob a reserva aparente de uma discreta contenção, irradiava aquele ludismo lúcido sem o qual sempre a vida se nos perde em sombra e penitência. Lembro-me como se fosse hoje da dádiva com que agraciou o Rafael, então menininho, por um tórrido sábado de Agosto, franqueando desconto pródigo no estipêndio do brinquedo eleito…

Manuel Medeiros é hoje uma saudade vivaz em quantos veramente amam os livros e sentem o sortilégio que neles há. Bem que a espaços, a Culsete, nau que o ilhéu intrépido fez singrar em lances de afirmação e prestígio, foi para mim, anos a fio, o porto seguro da descoberta e do achado, numa exuberância pejada de títulos raros e fundos de catálogo e culminada, em assomos de prontidão, pelas novidades editoriais. Emergindo da fragilidade delicada que a sua silhueta esguia nos sugeria, muito Medeiros se empertigava sempre que alguém proclamava esgotado um livro que ele, livreiro atento e provido, inexoravelmente ali tinha, bem à mão de semear palavras como imagens nas leiras das nossas almas. Cultíssimo, insigne e afável, este homem sabedor discreteava com gáudio os interesses dos seus clientes, propondo e orientando leituras, versando páginas, conversando capítulos, invocando autores que, com a sua presença, amiúde animavam as quatro paredes daquela sua casa aberta ao mundo e à vida.

Dada tarde, ao fio da conversa, surpreendeu-me com a dilecção que Álvaro Ribeiro lhe suscitava e que, até então, estivera longe de lhe suspeitar. À invocação do nome do filósofo, ergueu-se da cadeira, dirigiu-se a uma estante por detrás da sua secretária onde, logo o compreendi, instalara o seu sanctum sanctorum, pessoal, restrito e inegociável, e de lá voltou com um dos três volumes, cujo título já não recordo, que o portuense ilustre publicara na Colecção Filosofia e Ensaios, da Guimarães Editores.

De outra vez, falando-se de Bocage, comunicou-me, num contentamento solene e definitivo, que o Daniel Pires, estudioso emérito e autóctone, se encontrava a preparar a edição das Obras Completas de Elmano. Mais do que a voz, falou então nele o rosto, da sua face transparecendo a serena beatitude de quem, tranquilo, sabe ter sido observada, pelo conhecimento do mérito, a hierarquia da ordem cósmica. Quem senão o Daniel para aprontar uma tal empresa?

Durante muitos anos, sem que entanto o viesse a conhecer, Daniel Pires foi para mim o “senhor Bocage”, juízo vertido num axioma de autoridade inconsútil. Não obstante, seria o nome malogrado do italiano Malagrida, jesuíta ancião que Pombal, possesso de vindicta, destinara às derradeiras labaredas do Santo Ofício, a motivar o nosso primeiro encontro. De Gabriel Malagrida já Teresa Beleza, também ela admiradora de Medeiros, a quem, nos idos de 90, exaltará em crónica para o Jornal de Sesimbra, me dera a primeira notícia, nas suas lições de Direito Penal, destarte ilustrando, insurgente, a barbárie depositada no afã de punir; mas foi em Sampaio Bruno, nas páginas magistrais e piedosas de O Encoberto, que ampliei a consciência do destino funesto do sacerdote.

Declinava o Outono de 2012 quando fiquei ciente de que o Daniel estava prestes a lançar em Setúbal Padre Malagrida, o Último Condenado ao Fogo da Inquisição. Estive presente no lançamento, na novel Casa da Cultura, dei-me a conhecer e, num repto de exortação, convidei-o a apresentar a obra em Sesimbra, na Biblioteca Municipal. E o Daniel, dadivoso, entusiasta, não disse que não; e por isso veio, logo em Janeiro, no ano seguinte, por um sábado inclemente de intempérie. Veio e voltou, meses depois, para apresentar, desta feita na Casa do Bispo, a sequela daquele seu livro, O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida, também saído a lume na Colecção Clássicos de Setúbal, com a chancela do Centro de Estudos Bocageanos, casa a que preside em denodado magistério cívico e cultural.  

Naquele sábado bravio em que os ventos bailavam infrenes e o céu copioso, esvaído, se abatia em bátegas de implosão, acabara eu, horas antes, de escrever a Teoria Nova da Saudade, onde proponho, como via patriótica, a reconciliação de um superior entendimento entre os legados da Renascença Portuguesa e da Seara Nova. Estava então longe de supor que em breve seria possível concretizar um tal propósito com o Daniel, cuja filiação seareira, caldeada no estudo sério e profundo de António Sérgio e Raul Proença, se o não impede – muito pelo contrário – de respeitar a nobre acção educativa de um Leonardo Coimbra ou sentir a torrente lávica de Pascoaes, o impele ainda ao ponto de fuga onde um Jaime Cortesão, conciliador, nos concita a partilha da maior admiração. E logo em Julho, fará agora um ano, tive o grato privilégio, de, a seu convite, dar a conhecer aquela minha obra na Sala José Afonso…

Sobre Agostinho de Silva, genro do historiador colossal, pude, já este ano, com António Reis Marques, dar à estampa o volume que o vincula à pequena pátria sesimbrense. Causou surpresa a alguns que o livro, transpondo a raia do Alto das Vinhas, houvesse de surgir, por sugestão do Daniel, nos Clássicos de Setúbal. Ao caso insólito e audaz tomei-o porém pelo melhor dos augúrios, sabido o comum património que, de porto a porto, enlaça os dois povos num vislumbre meridional. Falo, como é evidente, da Arrábida em sua sublime insinuação para o céu, e do mar que ao redor a cinge, tesouro que, depois dos colóquios de Fevereiro e Março, em Setúbal, e do ensaio pioneiro com que o Ruy Ventura os coroou, pudemos enfim celebrar em Sesimbra, à entrada de um estio refractário. E o Daniel trouxe consigo, para o primeiro lançamento da nova edição de A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa, o seu co-autor António Mateus Vilhena, epistológrafo de Pascoaes e Brandão (que o escaparate da Culsete, pois claro!, me revelara num fabuloso volume de colaboração) e probo latinista que Maria Antónia Vitorino me afiança haver sido, a par de Urbano Tavares Rodrigues, o melhor didacta que a Faculdade de Letras de Lisboa lhe proporcionou…

O volume magistral, que o Daniel e o António agora corrigiram e sobretudo aumentaram, e o Centro de Estudos Bocageanos restituiu à letra de forma, inscreve-lhes a crédito um dos maiores acontecimentos editoriais do ano já meado. É uma recolha monumental, exuberante nos verbetes, cuidada na anotação, exaustiva até à exaustão que, mês após mês, pude testemunhar nos próprios autores, e ostenta na capa a nobilíssima visão a óleo que Rogério Chora relanceou sobre o convento. Por ela, eternos, estacionam Camões, Frei Agostinho, Dom Francisco Manuel de Melo ou um Herculano rendeiro, muito senhor do seu Calhariz. Vêm depois Pascoaes, Torga e Sebastião da Gama, sem esquecer os históricos setubalenses que, entre o popular e o erudito, de Calafate a Arronches Junqueiro, cantaram a Serra-Mãe, e as gerações novas de um Avelino de Sousa e de um Ruy Ventura, que o apelo da região, inexorável, resgatou ao rincão transtagano. Da camonina Piscosa já lá constava, vindo da edição princeps, o ínclito Joaquim Brandão, tornado edil de Setúbal logo após a implantação da República; mas a ânsia perfectiva do Daniel levou-o a perguntar-me por outros sesimbrenses que houvessem celebrado a Arrábida. E assim puderam ecoar, escalando as vertentes da montanha, os versos brônzeos de um Joaquim Rumina, o ingénuo frescor gracioso de Romeu Embaixador e a quadra, singela, mas fundamente filosofal, que António Telmo consagrou ao belveder da Achada. Em verdade, em verdade vos digo, nas comarcas do espírito todas as fronteiras nos condenam…

 

Pedro Martins

26-09-2014 11:36

Setenta

 

para a Margarida, o Nicholas e a Samantha

 

Há tempos comentava com o Ruy Ventura a dificuldade que sempre sinto ao tentar escrever sobre aqueles que, tendo já partido para a grande viagem, tanto me disseram, tanto me ajudaram, tanto me marcaram, como foi – como é – o caso do Cagica Rapaz. O vazio dolente da ausência adere, inexorável, à página em branco; tolhe, no recôndito da alma que impregna, os movimentos mais íntimos; e antepõe-se ao escrevente num rosário de caretas e negaças.

Nas últimas semanas, procurei, como quem pede esperando que lhe venha a ser dado, fazer como o grande cronista de Sesimbra, praticando, ensinava: encontrar a ponta por onde pegar – não a da caneta, que a tanto, há muito, à vista do monitor, se vai furtando o estrénuo dedilhar do teclado; mas a do novelo a desenvolver –; apanhar o fio à meada de Ariadne; e estendê-lo de um jeito tal que logo me iluminasse a saída no labirinto em que a saudade me encerrara.

E a resposta, enfim, chegou num domingo, dia do Senhor, logo pela manhã, numa esplanada da Cotovia, quando folheava A Bola, jornal em que o Cagica, em costumado assomo de honradez, não mais quis publicar do que uma crónica: o Estádio Nacional fará setenta anos no próximo dia 10 de Junho. Quando o leitor tiver em mãos esta edição do Raio de Luz, já a efeméride estará cumprida, como passadas serão também sete décadas desde que, numa noite do dia de Santo António, o Tó Manel emergiu à tona do mundo, na Rua dos Pescadores, em Sesimbra.

Creio bem que ele jamais pisou o relvado do Jamor. De ciência certa, sei pelo menos que nunca o fez numa final da Taça de Portugal, como a que há dias se disputou; mas bem o poderia ter feito, pela sua Académica, na época de 1966-67, frente ao Vitória de Setúbal, não fossem as voltas que a vida deu, desviando-o, no Verão de 1965, para a CUF do Barreiro, onde então se afirmou como valoroso futebolista.

Sobre o desporto-rei escreveu o Tó Manel palavras de um desassombro ímpar – para, como a criança no conto célebre, nos fazer ver que o rei vai nu. Terei por força de calar segredos que me fez saber sobre o imenso lastro de podridão que, ontem como hoje, percorre o circo infrene do pontapé: os ídolos ainda andam por aí, incensados pela turba ululante; mas os seus pés, feitos de barro, mal se distinguem da lama que agitam no pelado impune, onde a bola rola, rola…

Ser jogador com nome firmado na praça, medir forças com Eusébio, pedir meças aos melhores, breve o fez provar o desencanto que logo experimentam quantos se vêem a braços com a inveja dos semelhantes, essa hiena da alma de que António Telmo tanto nos falava, e em que, de Gil Vicente ao grande Goethe, sempre os homens sábios têm podido reconhecer o mistério do pecado original, esse mal primeiro e radical que, mãos dadas com o orgulho, produziu a queda de Lúcifer e ditou a morte de Abel. 

A invídia – é sempre assim – chegava-lhe dos mais próximos: os seus conterrâneos. Ao domingo à tarde, horas passadas sobre o prélio em que vinha de envergar o jérsei fabril, um ou outro circunstante, postado à ombreira do Central, lançava-lhe o chiste, o chasco, na baixeza de uma saudação torpe: Então sóce, mais uma barraca!?

Como era pequena, em sua insídia mesquinha, esta Sesimbra para o Tó Manel! E, por isso, logo que o fado o pôs de rota batida para Paris, não teve ele outro remédio que não fosse o de a ampliar com a lente nostálgica da distância, essa fada madrinha das estrelas e das montanhas. A saudade redimiu-os: ao homem e à terra. À lonjura no espaço respondeu um buraco no tempo e assim Cagica, sem, no fundo, jamais descrer dos seus, pôde engendrar, pela imagem transfiguradora do presépio, uma teoria geral das pessoas e dos lugares, as primeiras dando sentido aos segundos.

Com ele aprendemos a amar a Sesimbra da terra e a Sesimbra do mar. A vila – a póvoa agregada na cova funda, fustigada pela fome hiante dos vendavais com que a invernia, assoladora, impiedosa, a depauperava; mas também a estância solar de uma certa vilegiatura elegante, promessa cosmopolita de sonho, ilusão, evasão… E o campo, aberto e úbere, essa terra infinda de uma promissão em que o tempo não contava, varado como aiola no redondo da roda de uma carroça campesina. Ainda hoje essa roda cintila, obsidiante, numa das suas crónicas mais celebradas, numa circularidade imóvel que, de tão fortemente simbólica, comunicou àquelas linhas a perenidade dos deuses.

Acendo o lume votivo na pedra de ara. Evoco o Tó Manel nas tardes plácidas da Aiana, à sombra do grande sobreiro, pela chegada da arrière-saison; evoco-o nos serões de província, na sobriedade do bom pão das Caixas, na exuberância francesa da tábua dos queijos, na espuma férvida das libações que, serenas, nos iluminavam as horas e aqueciam as palavras, umas e outras para sempre ali passadas, a dois passos do mundo e da Raposa. Evoco-o na conversa confiada e confidente, no sorriso rasgado pela franqueza, na bondade do gesto, desprendido da hora incerta. Evoco-o na elegância refinada, na firmeza da lealdade, na prontidão da atitude, coisas hoje tão rarefeitas nos desvãos e descaminhos da vanidade.

Nado sob o signo de Gémeos, o Tó Manel era dois em um com o Cagica Rapaz. Este partiu, mas aquele ficou. Ao cabo de estranho diâmetro traçado entre os solstícios na espiral dos dias, o Cagica despediu-se, sem quase disso nos deixar aviso prévio, sessenta e cinco anos e seis meses depois de o Tó Manel haver arribado ao bom porto de Sesimbra, no termo de uma daquelas viagens das almas que lhe erguiam a fortaleza da crença. Cagica cumpriu-se com um sol movente na órbita jubilosa das nossas vidas. Mas o Tó Manel ainda anda por aí, à flor da relva, no Jamor dos corações, erguendo a taça esplendorosa em que lhe triunfam os setenta anos, acabados de fazer, como símbolo de inteireza e perfeição. E, com aquele seu mau feitio denodado, proverbial nos Come-Figos, desconfio bem que se tornará eterno…

 

Pedro Martins

26-09-2014 11:30

A revolução arrábida de Ruy Ventura

 

Que os livros se não medem aos palmos vem agora demonstrá-lo O Eixo e a Árvore: notas sobre a sacralização do território arrábido, de Ruy Ventura, que traz a marca da Apenas Livros, e que tive a honra e o grato prazer de apresentar, aquando do seu lançamento em Fevereiro último, na Sala José Afonso da Casa da Cultura de Setúbal. É um denso, belo e breve ensaio perpassado pela luz intensa da novidade, a que o autor comunicou o fulgor da sua escrita, celebrado por uma obra poética prestes a ser antologiada no Brasil, e onde sobressai o mais recente título, Contramina, que ainda este ano será vertido para o castelhano com a prestigiada chancela madrilena da Amargord.

Mas Ruy Ventura, nome há muito ligado ao concelho de Sesimbra (onde leccionou durante alguns anos), revela-se-nos também um lídimo e ousado investigador nos domínios da literatura (quer a erudita quer a tradicional), da arquitectura e da etnologia religiosas, e da toponímia, que concerta transversalmente. Agora, em O Eixo e a Árvore, veio operar uma revolução coperniciana no olhar que usualmente tendemos a formar de uma região, presos que estamos ao sortilégio do dorso formidável da Arrábida, conforme Raul Brandão, de rota batida para a Piscosa, a pudera celebrar n’Os Pescadores.

Na senda de Orlando Ribeiro, Ventura vai muito além da parcela, tão imponente quão restrita, que Sebastião da Gama designou belamente por Serra-Mãe, restituindo todo um território situado a poente e a norte das montanhas à sua integridade primordial. Não será todavia aqui que mora a admirável originalidade deste ensaio poliédrico, em que o autor cruza, aliás, saberes e lições de outros, de Manuel Calado e Paulo Pereira a Luís Marques e Moisés Espírito Santo. Mas, nascido do espanto, o seu estudo reclama também para si o halo da filosofia; e, procurando unir o que está disperso, emprega uma metodologia própria do hermetismo, ao lançar mão das correspondências e das analogias.

A ideia fundamental é a de que há um grande mito original e perdido, que encerra, como um mistério, a essência espiritual da Arrábida, e de que até nós chegaram apenas alguns ecos refractados em lendas.

Este mistério é inalcançável, por se tratar de algo a que, com Sampaio Bruno, poderíamos chamar uma verdade que está acima da razão. Mas o autor entende, e muito bem, que essa verdade pode e deve ser perseguida. E isso explica, a meu ver, a estrutura expositiva surpreendida neste seu livro, que se rege por uma construção espiralada ascensional, segundo a lei das coincidências. Coincidência, como ensina António Telmo, não significa acaso, segundo de ordinário se supõe, mas incidência no mesmo ponto. Como o movimento espiralado é aqui, por força, ascensional, teremos de lhe situar o ponto fixo inalterável na ordem da longitude, e a mudança nos graus da latitude. A esta ascese, que cinge mais e mais de perto uma realidade ainda e sempre inalcançável, convém, na pureza etimológica, o nome de anagogia (conduzir para o alto). E talvez se possa mesmo dizer que este é um livro sobre a anagogia da Arrábida, fazendo a hermenêutica do seu espaço e dos sucessivos actos humanos que, ao longo de milénios, a têm sacralizado.

Procedendo com crença metódica, na senda de um Álvaro Ribeiro, Ventura vê-se agraciado por uma revelação imaginal, e, com absoluto rigor topográfico, descobre no vale de Sesimbra (definido em suas vertentes pela serra da Achada, a que o primitivo castro está associado, e pelo morro do castelo) o eixo crucial e arborescente da recta em que a região se extrema, e que tem por pólos as duas ermidas da Memória, a do Espichel e a da Arrábida, numa homonímia que, fecundamente, logo se lhe constitui como homologia.

A centralidade espiritual de Sesimbra surge depois demonstrada, uma oitava acima, pela etnologia religiosa: dá-se o caso de a imagem do Senhor Jesus das Chagas, protector dos pescadores sesimbrenses, se não deslocar a outros santuários; mas, em compensação, surpresos ou não, vemos na procissão de 4 de Maio (porventura a mais grandiosa e imponente de quantas se realizam a Sul do Tejo) os círios ou as confrarias de outros locais de culto ancestral com seus estandartes. Vêm da região. Chegam do Espichel, das Pedreiras (Senhora de El Carmen), do Senhor do Bonfim de Setúbal, da Atalaia. Prestam vassalagem espiritual ao seu suserano.

Desta sorte desvelados, com recurso a uma memória toponímica que revisita o arcano linguístico fenício-púnico, os três elementos estruturantes da região arrábida, que são a Serra-Mãe, a Senhora do Cabo (da Boa Esperança?) e um vasto planalto que, como um campo aberto (onde ressoam, arcaicas, as raízes hebraicas BR + BRG, transportadas no tempo para a akra barbarion de Estrabão), faz a ligação entre os dois pólos, Ruy Ventura vê-se de novo a braços com o espanto, nascente eterna da criação, e fica às portas da titulação poética que Sebastião da Gama imprimiu à trilogia inaugural da sua obra, limitando-se, para já, a assinalar a coincidência numa das notas que o leitor encontra a final, muitas das quais se constituem programaticamente como o plano de um livro a fazer, para aqui, de novo, se usar uma expressão célebre de Sampaio Bruno.

Na verdade, este livro encerra já o germe ou o embrião da obra futura e maior que Ventura, por certo, virá a dedicar à Arrábida. Fora do seu âmbito ficaram, por ora, o arcaz imenso das lendas e uma parte significativa da mística e da literatura, bem que, com respeito a esta última, desde já se abordem en passant alguns dos escritores (Frei Agostinho, Sebastião da Gama, Pascoaes, Agustina e António Telmo) que na demanda precedem Ventura. É simplesmente fascinante a hipótese que entrevê no lenho do Senhor das Chagas a árvore–cruz, dolorosa e florida, em que Pascoaes, n’Os Poetas Lusíadas, simboliza a Saudade, para na Arrábida lhe situar o Horeb…

Não há sombra de arbítrio ou delírio no que nisto, como aliás em todo o estudo, nos é proposto. Antes o rigor de uma positividade que, superando o positivismo, sabe ver o Criador na criatura, como o Livro da Sabedoria ensina e Agostinho da Cruz repetiu. Este é, aliás, um livro do rigor e da rectificação.

O rigor ressuma da análise dos topónimos, quando Ventura propõe hipóteses e enuncia teses, sem nunca perder o tino. E por isso tem legitimidade para castigar o delírio fantasista encontrado em propostas, recentemente avançadas, para a origem de algumas lendas e de topónimos.

A rectificação dirige-se ao próprio culto. Não como imposição de dogmas ou de uma qualquer ortodoxia – Ruy Ventura parece admitir até o sincretismo new age –, mas como recusa pura e simples da fancaria pseudo-religiosa que tudo aceita e tudo promove porque nada valoriza. E lembrando que em toda a região da Arrábida a Capela do Espírito Santo dos Mareantes foi o único templo consagrado onde até hoje se prestou culto organizado ao Consolador, não deixa o autor de chamar a nossa atenção para o facto de, desde tempos antigos, as Festas do Espírito Santo representarem por vezes manifestações de um poder que é apenas caciquismo ou veículo de afirmação pessoal. 

Como bom descendente de gente de nação de Castelo de Vide – teve uma ancestra em linha recta que foi obrigada a usar sambenito para o resto da vida e, o que ainda está por averiguar, terá tido um outro avoengo, pai da desditosa senhora que venho de mencionar, queimado na Praça do Giraldo, em Évora –, Ruy Ventura cruza nestas páginas a sabedoria da Terra e a sabedoria da Palavra, que são as duas grandes colunas da tradição hebraica. Ou, se quiserem, casa o Céu com a Terra, como convém a alguém que teve também como antepassada uma freira cristã que nos legou escritos místicos.

Avanço uma última nota sobre o post-scriptum que remata o caderno. É ele o culminar de um exercício da razão poética que mostra como a demanda ensaiada se enraíza profundamente, como risco e aventura, na vida e nas vivências do seu autor, e por isso mesmo é que é uma demanda. Por esta se anuncia, possivelmente, na geração nova um imprevisto mas subtil pensador católico da Filosofia Portuguesa…

 

Pedro Martins

17-09-2014 17:27

Filho pródigo

 

O meu pai perguntou-me: – Mas tu sabes com quem é que te estás a meter?! Com efeito, não sabia. Não tinha a mínima noção da glória humilde resguardada na reserva singela das duas iniciais – R. M. – que rematavam o artigo, intitulado «Herman e los Hermanos», que me tinha motivado a carta, dirigida, com pedido de publicação, ao director do jornal. Falo, está bem de ver, de Rafael Monteiro e do Raio de Luz, no ano ido, e já distante, de 1988. Tinha dezassete anos…

O caso, de aplauso, tivera em Rafael o protagonista; e eu, que viera de aprender, no venerando Liceu Camões, a pretensão científica da História Nova, com o seu privilégio de atenção aos grandes movimentos de massa e aos ditames do geográfico, do económico e do social, insurgi-me, na missiva, de peito feito, face ao gáudio do eremita perante a suspensão, pela RTP, do programa Humor de Perdição, de Herman José, onde este submetera ao anedótico da caricatura algumas figuras maiores da História de Portugal. Foi a minha estreia na imprensa sesimbrense…

À parte a opção do canal estatal, que ao tempo tomei por censória, estava ainda longe de alcançar, com Jaime Cortesão, esse mestre algo desapercebido de Rafael, o equilíbrio concertante da geo-história e da história social com os factos relevados e as figuras singulares que nutrem a crónica épica de uma pátria. Num salão diplomático do Brasil, torrão imenso para onde Salazar o banira, o maior português do século XX, o lúcido, lídimo poeta da Divina Voluptuosidade (Pessoa, numa carta a Cortesão, dá-lhe a primazia entre os vates do Saudosismo na geração sequente à de Junqueiro e Pascoaes), o dramaturgo intrépido de Adão e Eva, o preclaro historiador dos Descobrimentos, o subtil exegeta do último Eça, pusera em sentido Fernand Braudel, interpelando o corifeu dos Annales, forçando-o à condescendência de atribuir uns 30 % à liberdade criadora do homem, à possibilidade da intervenção individual na história.

Confessa Cortesão: “Demo-nos por satisfeitos. Não era o caso de regatear sobre os números. Tanto mais quanto julgamos difícil levar o conhecimento às exactidões da proporção, quando se trata de problemas filosóficos. Pois, ao fim e ao cabo, o que se debatia e eu desejava conhecer era a atitude filosófica, postulada pelo professor Braudel em história”. O audaz herói lusitano diz o óbvio num livro cuja grata leitura fiquei devendo à magistral indicação de António Telmo, que o descobrira em Brasília quando por lá andou com Agostinho da Silva, genro de Cortesão.

Quando arrostei Rafael Monteiro, estava longe de suspeitar a longa amizade que Agostinho lhe tributava. Por esses dias dos meus verdes anos em que me afoitei à polémica travada, com seu quê de bravata, com o sublime ermitão, George Agostinho Baptista da Silva estava prestes a render-se ao estrépito mundano das Conversas Vadias na mesma estação televisiva que interditara o cáustico de Azeitão.

O sucesso causou estranheza entre os conviventes do filósofo nas tertúlias castelãs de Sesimbra. Tempos antes de o primeiro programa ter ido para o ar, Agostinho, sob o recorte das ameias, no sigilo da velha casa paroquial, confidenciara a Telmo, Rafael e Reis Marques ter sido abordado para discorrer no quadro da caixa mágica. Declinara, porém, o convite para o discreteio. “Já fechei a loja” – afiançou então aos três circunstantes. Depois, foi o que se viu! Desconcertante, este Agostinho…

Como conto no epílogo de Agostinho da Silva em Sesimbra, estudo histórico e biográfico que dá o título ao livro que venho de lançar em Setúbal com António Reis Marques, essoutro amigo sesimbrense do autor de Um Fernando Pessoa, fui dos últimos a conhecer Agostinho da Silva. Fui entrevistá-lo, com António Ladeira e José Pedro Xavier, para a edição de Setembro de 1993 do Raio de Luz. Estava longe de supor que o lance se volveria histórico. Por mor do acaso, ou do destino – que sabemos nós a propósito? –, a conversa com o pensador, que viria a partir em 3 de Abril do ano seguinte, tornou-se a sua derradeira entrevista de imprensa. Fi-la agora rematar o volume, logo após os testemunhos de Reis Marques, juntamente com duas cartas que Álvaro Ribeiro, condiscípulo de Agostinho e mestre dilecto de António Telmo, escreveu a Rafael.

É sobretudo este um livro sobre os grandes homens de Sesimbra, neles se incluindo os que por ela passaram, ou a ela vieram, que a camonina Piscosa é menos o lugar que se atravessa do que aquele onde se fica. Agostinho à cabeça, como é de justiça, dado o auge de notoriedade que lhe trouxeram os píncaros das antenas, para nele se lhe relatarem os actos, os gestos e os projectos sesimbrenses, numa trama de solidão e convívio onde, além do acastelado triunvirato, também despontam João dos Santos, celebrado médico pedopsiquiatra, um Afonso Botelho, escrevente veraneante de um conto em vilegiatura, o tremendo poder desse nosso filósofo maior que foi Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino em seu destemor taurino, e o presuntivo Joel Serrão, urdindo laudas magníficas como panos de Arrás no remanso campestre da Quintola de Santana. Por eles é Sesimbra o que foi ou o que poderia ter sido.

Assim faço jus à lição de Cortesão. Ergo fosforescências, rasgo vultos luminosos nas paredes sombrias do olvido. Sem esquecer a sentença do Cagica Rapaz, esse fraternal Tó Manel que a Parca, criminosa, me roubou, e que tanto nos recordava serem as pessoas, e somente as pessoas, em sua singular individualidade, a conferir sentido a uma terra. De repente, em Domingo de Ramos, qual filho pródigo, quase vinte anos depois, dou-me conta de que estou de volta às páginas do Raio de Luz…      

 

Pedro Martins

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