AS CRÓNICAS NO «RAIO DE LUZ»: JUNHO DE 2014

26-09-2014 11:36

Setenta

 

para a Margarida, o Nicholas e a Samantha

 

Há tempos comentava com o Ruy Ventura a dificuldade que sempre sinto ao tentar escrever sobre aqueles que, tendo já partido para a grande viagem, tanto me disseram, tanto me ajudaram, tanto me marcaram, como foi – como é – o caso do Cagica Rapaz. O vazio dolente da ausência adere, inexorável, à página em branco; tolhe, no recôndito da alma que impregna, os movimentos mais íntimos; e antepõe-se ao escrevente num rosário de caretas e negaças.

Nas últimas semanas, procurei, como quem pede esperando que lhe venha a ser dado, fazer como o grande cronista de Sesimbra, praticando, ensinava: encontrar a ponta por onde pegar – não a da caneta, que a tanto, há muito, à vista do monitor, se vai furtando o estrénuo dedilhar do teclado; mas a do novelo a desenvolver –; apanhar o fio à meada de Ariadne; e estendê-lo de um jeito tal que logo me iluminasse a saída no labirinto em que a saudade me encerrara.

E a resposta, enfim, chegou num domingo, dia do Senhor, logo pela manhã, numa esplanada da Cotovia, quando folheava A Bola, jornal em que o Cagica, em costumado assomo de honradez, não mais quis publicar do que uma crónica: o Estádio Nacional fará setenta anos no próximo dia 10 de Junho. Quando o leitor tiver em mãos esta edição do Raio de Luz, já a efeméride estará cumprida, como passadas serão também sete décadas desde que, numa noite do dia de Santo António, o Tó Manel emergiu à tona do mundo, na Rua dos Pescadores, em Sesimbra.

Creio bem que ele jamais pisou o relvado do Jamor. De ciência certa, sei pelo menos que nunca o fez numa final da Taça de Portugal, como a que há dias se disputou; mas bem o poderia ter feito, pela sua Académica, na época de 1966-67, frente ao Vitória de Setúbal, não fossem as voltas que a vida deu, desviando-o, no Verão de 1965, para a CUF do Barreiro, onde então se afirmou como valoroso futebolista.

Sobre o desporto-rei escreveu o Tó Manel palavras de um desassombro ímpar – para, como a criança no conto célebre, nos fazer ver que o rei vai nu. Terei por força de calar segredos que me fez saber sobre o imenso lastro de podridão que, ontem como hoje, percorre o circo infrene do pontapé: os ídolos ainda andam por aí, incensados pela turba ululante; mas os seus pés, feitos de barro, mal se distinguem da lama que agitam no pelado impune, onde a bola rola, rola…

Ser jogador com nome firmado na praça, medir forças com Eusébio, pedir meças aos melhores, breve o fez provar o desencanto que logo experimentam quantos se vêem a braços com a inveja dos semelhantes, essa hiena da alma de que António Telmo tanto nos falava, e em que, de Gil Vicente ao grande Goethe, sempre os homens sábios têm podido reconhecer o mistério do pecado original, esse mal primeiro e radical que, mãos dadas com o orgulho, produziu a queda de Lúcifer e ditou a morte de Abel. 

A invídia – é sempre assim – chegava-lhe dos mais próximos: os seus conterrâneos. Ao domingo à tarde, horas passadas sobre o prélio em que vinha de envergar o jérsei fabril, um ou outro circunstante, postado à ombreira do Central, lançava-lhe o chiste, o chasco, na baixeza de uma saudação torpe: Então sóce, mais uma barraca!?

Como era pequena, em sua insídia mesquinha, esta Sesimbra para o Tó Manel! E, por isso, logo que o fado o pôs de rota batida para Paris, não teve ele outro remédio que não fosse o de a ampliar com a lente nostálgica da distância, essa fada madrinha das estrelas e das montanhas. A saudade redimiu-os: ao homem e à terra. À lonjura no espaço respondeu um buraco no tempo e assim Cagica, sem, no fundo, jamais descrer dos seus, pôde engendrar, pela imagem transfiguradora do presépio, uma teoria geral das pessoas e dos lugares, as primeiras dando sentido aos segundos.

Com ele aprendemos a amar a Sesimbra da terra e a Sesimbra do mar. A vila – a póvoa agregada na cova funda, fustigada pela fome hiante dos vendavais com que a invernia, assoladora, impiedosa, a depauperava; mas também a estância solar de uma certa vilegiatura elegante, promessa cosmopolita de sonho, ilusão, evasão… E o campo, aberto e úbere, essa terra infinda de uma promissão em que o tempo não contava, varado como aiola no redondo da roda de uma carroça campesina. Ainda hoje essa roda cintila, obsidiante, numa das suas crónicas mais celebradas, numa circularidade imóvel que, de tão fortemente simbólica, comunicou àquelas linhas a perenidade dos deuses.

Acendo o lume votivo na pedra de ara. Evoco o Tó Manel nas tardes plácidas da Aiana, à sombra do grande sobreiro, pela chegada da arrière-saison; evoco-o nos serões de província, na sobriedade do bom pão das Caixas, na exuberância francesa da tábua dos queijos, na espuma férvida das libações que, serenas, nos iluminavam as horas e aqueciam as palavras, umas e outras para sempre ali passadas, a dois passos do mundo e da Raposa. Evoco-o na conversa confiada e confidente, no sorriso rasgado pela franqueza, na bondade do gesto, desprendido da hora incerta. Evoco-o na elegância refinada, na firmeza da lealdade, na prontidão da atitude, coisas hoje tão rarefeitas nos desvãos e descaminhos da vanidade.

Nado sob o signo de Gémeos, o Tó Manel era dois em um com o Cagica Rapaz. Este partiu, mas aquele ficou. Ao cabo de estranho diâmetro traçado entre os solstícios na espiral dos dias, o Cagica despediu-se, sem quase disso nos deixar aviso prévio, sessenta e cinco anos e seis meses depois de o Tó Manel haver arribado ao bom porto de Sesimbra, no termo de uma daquelas viagens das almas que lhe erguiam a fortaleza da crença. Cagica cumpriu-se com um sol movente na órbita jubilosa das nossas vidas. Mas o Tó Manel ainda anda por aí, à flor da relva, no Jamor dos corações, erguendo a taça esplendorosa em que lhe triunfam os setenta anos, acabados de fazer, como símbolo de inteireza e perfeição. E, com aquele seu mau feitio denodado, proverbial nos Come-Figos, desconfio bem que se tornará eterno…

 

Pedro Martins

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