AS CRÓNICAS NO «RAIO DE LUZ»: MAIO DE 2014

26-09-2014 11:30

A revolução arrábida de Ruy Ventura

 

Que os livros se não medem aos palmos vem agora demonstrá-lo O Eixo e a Árvore: notas sobre a sacralização do território arrábido, de Ruy Ventura, que traz a marca da Apenas Livros, e que tive a honra e o grato prazer de apresentar, aquando do seu lançamento em Fevereiro último, na Sala José Afonso da Casa da Cultura de Setúbal. É um denso, belo e breve ensaio perpassado pela luz intensa da novidade, a que o autor comunicou o fulgor da sua escrita, celebrado por uma obra poética prestes a ser antologiada no Brasil, e onde sobressai o mais recente título, Contramina, que ainda este ano será vertido para o castelhano com a prestigiada chancela madrilena da Amargord.

Mas Ruy Ventura, nome há muito ligado ao concelho de Sesimbra (onde leccionou durante alguns anos), revela-se-nos também um lídimo e ousado investigador nos domínios da literatura (quer a erudita quer a tradicional), da arquitectura e da etnologia religiosas, e da toponímia, que concerta transversalmente. Agora, em O Eixo e a Árvore, veio operar uma revolução coperniciana no olhar que usualmente tendemos a formar de uma região, presos que estamos ao sortilégio do dorso formidável da Arrábida, conforme Raul Brandão, de rota batida para a Piscosa, a pudera celebrar n’Os Pescadores.

Na senda de Orlando Ribeiro, Ventura vai muito além da parcela, tão imponente quão restrita, que Sebastião da Gama designou belamente por Serra-Mãe, restituindo todo um território situado a poente e a norte das montanhas à sua integridade primordial. Não será todavia aqui que mora a admirável originalidade deste ensaio poliédrico, em que o autor cruza, aliás, saberes e lições de outros, de Manuel Calado e Paulo Pereira a Luís Marques e Moisés Espírito Santo. Mas, nascido do espanto, o seu estudo reclama também para si o halo da filosofia; e, procurando unir o que está disperso, emprega uma metodologia própria do hermetismo, ao lançar mão das correspondências e das analogias.

A ideia fundamental é a de que há um grande mito original e perdido, que encerra, como um mistério, a essência espiritual da Arrábida, e de que até nós chegaram apenas alguns ecos refractados em lendas.

Este mistério é inalcançável, por se tratar de algo a que, com Sampaio Bruno, poderíamos chamar uma verdade que está acima da razão. Mas o autor entende, e muito bem, que essa verdade pode e deve ser perseguida. E isso explica, a meu ver, a estrutura expositiva surpreendida neste seu livro, que se rege por uma construção espiralada ascensional, segundo a lei das coincidências. Coincidência, como ensina António Telmo, não significa acaso, segundo de ordinário se supõe, mas incidência no mesmo ponto. Como o movimento espiralado é aqui, por força, ascensional, teremos de lhe situar o ponto fixo inalterável na ordem da longitude, e a mudança nos graus da latitude. A esta ascese, que cinge mais e mais de perto uma realidade ainda e sempre inalcançável, convém, na pureza etimológica, o nome de anagogia (conduzir para o alto). E talvez se possa mesmo dizer que este é um livro sobre a anagogia da Arrábida, fazendo a hermenêutica do seu espaço e dos sucessivos actos humanos que, ao longo de milénios, a têm sacralizado.

Procedendo com crença metódica, na senda de um Álvaro Ribeiro, Ventura vê-se agraciado por uma revelação imaginal, e, com absoluto rigor topográfico, descobre no vale de Sesimbra (definido em suas vertentes pela serra da Achada, a que o primitivo castro está associado, e pelo morro do castelo) o eixo crucial e arborescente da recta em que a região se extrema, e que tem por pólos as duas ermidas da Memória, a do Espichel e a da Arrábida, numa homonímia que, fecundamente, logo se lhe constitui como homologia.

A centralidade espiritual de Sesimbra surge depois demonstrada, uma oitava acima, pela etnologia religiosa: dá-se o caso de a imagem do Senhor Jesus das Chagas, protector dos pescadores sesimbrenses, se não deslocar a outros santuários; mas, em compensação, surpresos ou não, vemos na procissão de 4 de Maio (porventura a mais grandiosa e imponente de quantas se realizam a Sul do Tejo) os círios ou as confrarias de outros locais de culto ancestral com seus estandartes. Vêm da região. Chegam do Espichel, das Pedreiras (Senhora de El Carmen), do Senhor do Bonfim de Setúbal, da Atalaia. Prestam vassalagem espiritual ao seu suserano.

Desta sorte desvelados, com recurso a uma memória toponímica que revisita o arcano linguístico fenício-púnico, os três elementos estruturantes da região arrábida, que são a Serra-Mãe, a Senhora do Cabo (da Boa Esperança?) e um vasto planalto que, como um campo aberto (onde ressoam, arcaicas, as raízes hebraicas BR + BRG, transportadas no tempo para a akra barbarion de Estrabão), faz a ligação entre os dois pólos, Ruy Ventura vê-se de novo a braços com o espanto, nascente eterna da criação, e fica às portas da titulação poética que Sebastião da Gama imprimiu à trilogia inaugural da sua obra, limitando-se, para já, a assinalar a coincidência numa das notas que o leitor encontra a final, muitas das quais se constituem programaticamente como o plano de um livro a fazer, para aqui, de novo, se usar uma expressão célebre de Sampaio Bruno.

Na verdade, este livro encerra já o germe ou o embrião da obra futura e maior que Ventura, por certo, virá a dedicar à Arrábida. Fora do seu âmbito ficaram, por ora, o arcaz imenso das lendas e uma parte significativa da mística e da literatura, bem que, com respeito a esta última, desde já se abordem en passant alguns dos escritores (Frei Agostinho, Sebastião da Gama, Pascoaes, Agustina e António Telmo) que na demanda precedem Ventura. É simplesmente fascinante a hipótese que entrevê no lenho do Senhor das Chagas a árvore–cruz, dolorosa e florida, em que Pascoaes, n’Os Poetas Lusíadas, simboliza a Saudade, para na Arrábida lhe situar o Horeb…

Não há sombra de arbítrio ou delírio no que nisto, como aliás em todo o estudo, nos é proposto. Antes o rigor de uma positividade que, superando o positivismo, sabe ver o Criador na criatura, como o Livro da Sabedoria ensina e Agostinho da Cruz repetiu. Este é, aliás, um livro do rigor e da rectificação.

O rigor ressuma da análise dos topónimos, quando Ventura propõe hipóteses e enuncia teses, sem nunca perder o tino. E por isso tem legitimidade para castigar o delírio fantasista encontrado em propostas, recentemente avançadas, para a origem de algumas lendas e de topónimos.

A rectificação dirige-se ao próprio culto. Não como imposição de dogmas ou de uma qualquer ortodoxia – Ruy Ventura parece admitir até o sincretismo new age –, mas como recusa pura e simples da fancaria pseudo-religiosa que tudo aceita e tudo promove porque nada valoriza. E lembrando que em toda a região da Arrábida a Capela do Espírito Santo dos Mareantes foi o único templo consagrado onde até hoje se prestou culto organizado ao Consolador, não deixa o autor de chamar a nossa atenção para o facto de, desde tempos antigos, as Festas do Espírito Santo representarem por vezes manifestações de um poder que é apenas caciquismo ou veículo de afirmação pessoal. 

Como bom descendente de gente de nação de Castelo de Vide – teve uma ancestra em linha recta que foi obrigada a usar sambenito para o resto da vida e, o que ainda está por averiguar, terá tido um outro avoengo, pai da desditosa senhora que venho de mencionar, queimado na Praça do Giraldo, em Évora –, Ruy Ventura cruza nestas páginas a sabedoria da Terra e a sabedoria da Palavra, que são as duas grandes colunas da tradição hebraica. Ou, se quiserem, casa o Céu com a Terra, como convém a alguém que teve também como antepassada uma freira cristã que nos legou escritos místicos.

Avanço uma última nota sobre o post-scriptum que remata o caderno. É ele o culminar de um exercício da razão poética que mostra como a demanda ensaiada se enraíza profundamente, como risco e aventura, na vida e nas vivências do seu autor, e por isso mesmo é que é uma demanda. Por esta se anuncia, possivelmente, na geração nova um imprevisto mas subtil pensador católico da Filosofia Portuguesa…

 

Pedro Martins

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