AS CRÓNICAS NO «RAIO DE LUZ»: SETEMBRO DE 2014

26-09-2014 11:43

Derby

 

Pendular, a mensagem da Ana Olival chegou há dois dias, pelo correio electrónico, informando-me de que poderia entregar a colaboração para esta edição até ao dia 16 do mês a que respeita, e que é, evidentemente, o Setembro em curso. Confesso que muito me aprazem os seus lembretes proverbiais – aguilhão benévolo com que me espicaça a inércia madraça –, segundo o plano anual de antemão comunicado aos escreventes. Dou-me bem com esta organização de casa arrumada, cartas na mesa, posta para o ágape mensal dos comensais que são os leitores do jornal. E se, porventura, em tempos de porvir, derdes pela minha falta nesta página, desde já sabereis que só a mim, por tardo na entrega, pródigo na extensão ou falho na imaginação, poderá a ausência ser imputada.

Quando o António Marques, para minha surpresa, sorriso nos lábios, câmara em riste, se assomou em Setúbal na tarde de 12 de Abril e, no final da sessão, já nos passos perdidos da Casa da Cultura, me impetrou a voltar à casa de partida, não terei chegado a pestanejar. Só ele o saberá dizer. Face ao imperativo, fi-lo como mandam as regras inclementes do velho Monopoly que, na idade imberbe, nos povoava – a mim, ao António Ladeira e a alguns outros – tardes e serões, entre o sótão da Quintinha e uma garagem na Quintola. Fi-lo, pois, sem receber o estipêndio da passagem, que ao tempo, antes do euro, remontava a dois contos de réis – se é verdade que, como n’As Aproximações sentencia Agostinho da Silva, naquele dia celebrado no Sado, «quanto ao trabalho, é evidente que só se pode fazer bem o que se ama e que repugna à essência mais íntima do homem receber dinheiro por amar». Daí o resplendor da palavra amador, na acepção maior da sua grandeza.

Como Abril é o mês mais cruel – di-lo T. S. Eliot, logo que finca o arado n’A Terra Devastada, em quatro versos onde fulgura, ressoando, a Saudade de Teixeira Pascoaes; redi-lo, sem superlativo, o vate de Gatão, próximo do epílogo do seu Santo Agostinho (comentários) –, a empresa começou sob o signo da urgência, não porque fosse para ontem, mas porque era para o dia seguinte, a entrega da primeira crónica. E, no ápice de uma tarde, porque

 

A pena é irmã da enxada,

A página dum livro é terra semeada,

 

tornei à leira, rasguei estrias cavas na courela pousia, lancei-lhe palavras como quem bota sementes, sulquei regos de tinta – e a planta irrompeu, para pegar de estaca, despontando folha a folha nesta página, que costuma ser a sexta do Raio de Luz.

Sexta é também a crónica que o leitor tem agora entre mãos. Com o equinócio mudou entretanto a estação: na véspera da saída deste jornal, se o agendamento for cumprido.

Escrevo, porém, ao cair o pano sobre o mês de Agosto. A subtil delicadeza da Ana instou-me à factura da crónica; e, por isso, logo pela manhã, tomo de empréstimo o motivo do dia, sem perder de vista o propósito íntimo que em Setúbal adoptara: escrever sempre com Sesimbra por perto, indo embora por esse mundo fora.

Não sei quem levará a melhor no prélio da noite, mas desde já declaro que, nesta porfia entre Benfica e Sporting, o meu vaticínio volta a pender para o lado esquerdo, onde pulsa o coração. Quando, certo dia, há uma década, ou perto disso, indaguei da preferência clubística do padre Sílvio Couto, o então prior de Santiago respondeu-me, peremptório, com uma pergunta terminante: de que cor é o sangue?        

Não escapamos, por mais que o queiramos, ao sortilégio das rivalidades. Vem da noite dos tempos o que em tenra idade se começa. Há dias, no Porto, a minha filha Leonor, tocada de incipiente benfiquismo, insurgia-se, protestando vindicta, contra o leão que, com as patorras, jugula a águia no topo da coluna altaneira, bem ao centro da Rotunda da Boavista. Como é ali diverso, deveras nefasto, o drama do jogo que a alegoria imobilizou na escultura!… 

Foi isto no outro domingo, precedendo este em que agora vos escrevo, e o Glorioso, por sinal, triunfou no Bessa, perante o Boavista. Íamos de rota batida para Tormes, em Santa Cruz do Douro, terras de Baião, onde visitámos a casa de Eça de Queiroz, aquela que, com a edénica majestade da paisagem circundante, tão belamente o inspirou, nos derradeiros anos de vida, a escrever A Cidade e as Serras. A Parca colheu o escritor em Neuilly-sur-Seine, no limiar de Paris, antes que ele pudesse testemunhar o romance à vinda do prelo. E, no entanto, não foi no ninho longínquo da montanha, nem no refinamento sumptuoso de uma urbe imensa, que o diáfano prosador viu a luz do dia a vez primeira. Póvoa do Varzim, onde, de facto, nasceu, e Vila do Conde, onde, dias depois, viria a ser baptizado, ainda hoje lhe disputam, em rijo transe de emulação, o prestígio do berço, que ao baptismo pertence cristãmente o privilégio de um renascimento…

À semelhança de Eça filho natural, coube a Camilo Castelo Branco, seu eterno rival, nascer em Lisboa de mãe sesimbrense, conforme Joaquim Preto Guerra (Rumina) pôde provar, testemunhal e genealogicamente, em 1944, nas páginas d’O Sesimbrense. Como Pascoaes, dois anos antes, afirmara em O Penitente (Camilo Castelo Branco), ígnea biografia que lhe consagrou, foi «por ironia do Destino» que o genial novelista, tão entranhadamente nortenho, veio ao mundo na capital. Porque a terra de ninguém lhe não convenha de todo, façamo-lo agora nosso, arrimemo-lo ao rincão sesimbrense pelo cordão que o prendeu a Jacinta Rosa, desenhando-lhe um vulto de luz à sombra da telha que ela habitou, ali para as bandas de Bombaldes, como de justiça cabe a um filho natural… da Mãe Natureza, já se vê, que a mulher, sobre ser terra, é casa.

Por certo, não estaria Pascoaes, quando escreveu O Penitente, na posse dos informes que Rumina, tempos depois, viria a firmar. Alberto Pimentel, n’O Romance de um Romancista, obra a que o gigante do Marão, sempre meticuloso e exaustivo na preparação das suas biografias, não terá deixado de atender, dá por insegura a ascendência sesimbrense de Camilo, tomando a hipótese por um equívoco, pois que natural da Piscosa fosse outrossim a criada, Carlota Joaquina, que acompanhou o escritor na sua orfandade.

Ironia maior é serem tidos por filhos naturais, aos olhos da época, um Eça e um Camilo, tão sobrenaturais nos prodígios da sua inventiva. A cabaia d’O Mandarim ainda lá está, na vitrina de uma sala de Tormes, convizinha de telas de D. Carlos e de um desenho de Dona Amélia, esses trágicos visitantes de Sesimbra; e à saudade de Jacinta Rosa assina Pascoaes, na escrita tumultuosa de Camilo, a sombra perpétua de um estro merencório. Não é caso único na obra do mestre de Gatão. Também no Santo Agostinho (comentários), livro supremo de 1945, Santa Mónica, mãe do autor das Confissões, de pertinácia decisiva na conversão do filho ao dogma romano, nos surge como o ventre que o vai dar à luz de Deus, depois de o haver dado à luz do sol…

A ascendência sesimbrense de Camilo Castelo Branco é hoje um facto consabido nos meios camilianos. Quando, na véspera da ida a Tormes, estive, por este Agosto de refrigério, na Casa de Camilo, em São Miguel de Seide, ao cabo da visita comentei com o nosso guia, Reinaldo Ferreira, camiliano excelente e insigne, ter o seu patrono a maternal raiz na minha terra adoptiva. Logo a palavra Sesimbra, que eu ocultara, lhe aflorou os lábios! Acto contínuo, mostrou-me um livro onde se dá conta do sucesso, em página ilustrada com a fotografia da morada sesimbrense de Jacinta Rosa, bem esclarecida por minuciosa descrição topográfica da sua localização.    

Nesta rapsódia de contendas, leve Seide a palma a Tormes. Ali, a cada passo, sente-se pulsar, visceral, vibrátil, agónica, trágica, num encantamento intimista de que nos não libertamos, a funda genialidade de Camilo; aqui, certo refinamento blasé do Eça parisiense parece ter-se fatalmente comunicado às paredes austeras de uma casa cujas janelas, sem embargo, dão para o Paraíso. Como se o polimento desmesurado do 202 dos Campos Elíseos houvesse viajado, clandestino, na bagagem de Jacinto.  

Tomo partido, está bem de ver; mas importa sopesar como Eça viu aqui inscrito a débito o costado pexito de Camilo e a evocação sublime que do penitente deixou Teixeira de Pascoaes, tão da minha veneração, e que iremos celebrar, já em Outubro, no Congresso Internacional sobre As Biografias no Pensamento Português dos séculos XIX-XX, por ocasião do 80.º aniversário do São Paulo. E não tem Pascoaes, no confronto inexorável com o rival Pessoa, a quem jamais desmerece, o desfavor da cósmica ascensão deste ao estrelato do orbe? Quem com tudo isto ficou desde já a perder foi o meu pessoano amigo Carlos Otero, que era para vir à baila nesta leva. Aqui estará, assim o espero e desejo, para a próxima, que o António Marques bem protesta, dando-me a saber que, uma vez mais, excedi o espaço prescrito. É no que dá fazer as coisas com tempo… 

  

Pedro Martins

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