AS CRÓNICAS NO «RAIO DE LUZ»: OUTUBRO DE 2014
Pagão
Quando as notas inaugurais do Concerto número 9 para piano e orquestra soaram a vez primeira no velho sótão da Quintinha sucedeu em mim a comoção súbita e imprevista do ingresso num mundo novo, a mesma que tantas vezes tenho sentido ao dobrar, pela manhã, a derradeira curva de Argéis, quando a pasmosa majestade da baía de Sesimbra se nos oferece ao renovo do espanto.
No estridor do atrito, a vitrola fritava; mas o prato do vinil foi bandeja de iguarias que jamais voltei a degustar. Creio bem que o fulgor imponente de um mito se instaura unicamente nestes instantes primordiais, interstícios inefáveis de um sortilégio insondável, como quando o relâmpago corisca na iminência do trovão. Suspenso além do tempo, o mundo detém-se então; e o raio que o céu assim desfere é uma seta despedida ao coração.
Certo que o sótão da Quintinha não será tão antigo quanto aqui o faço crer ao leitor amigo; mas, nas partidas dobradas pelas contas da minha memória, lanço-lhe agora a crédito a marca austera da etiqueta Erato, o garbo galante e gentil de uma tela rococó com suas raparigas em flor, certo aparato de informes iluminando quem escuta, tudo o que naquela bela capa da editora Dacapo operava harmónico prodígio pelo concerto da vista com o ouvido.
Quando, vai para uns quinze anos, encetei a minha colecção de música erudita em discos compactos, inaugurei-a com uma integral dos Concertos, interpretada e dirigida, a um só tempo, pela verve magiar do magistral Géza Anda, sob a égide selecta da Deutsche Grammophon. Mas são ainda os dedos de Maria João Pires que, na Quintinha, me percorrem as páginas amarelas de uma lembrança já delida pelas horas…
Por estes dias de Inverno que o Setembro bisonho nos antecipou, bem gostaria eu de ter perguntado ao Carlos Otero que lugar ocupa deveras o excelente Jeunehomme no afã devocionário do seu apostolado mozartiano. Mas o Carlos, desta feita, como de tantas outras, veio de fugida, mais por mor de Franz Schubert, que num destes domingos foi celebrar à Regaleira na companhia do pianista Paulo Oliveira; e o almoço fugaz na Baixa lisboeta deixou o ponto por esclarecer.
Tanto quanto sei, o Carlos vai mais pelo Concerto para Clarinete e Orquestra, que não deixa nunca de incluir na sua “missa de Gottlieb”, se é justo que assim nomeie o fervor religioso com que propaga a crença sem quebranto no génio supremo de Wolfgang Amadeus Mozart. Mas o Jeunehomme, nono pelo nove que na lição de Dante revela o novo, é que me enche todas as medidas. Dubitativo embora, Charles Rosen aponta-o como a primeira obra-prima inequívoca do estilo clássico; Brendel, esse monstro das teclas, reputa-o entre as maiores maravilhas que há no mundo; e Alfred Einstein vê nele a Eroica de Mozart, em alusão evidente à Terceira Sinfonia de Beethoven.
No confronto dos génios rivais, o meu coração, claro está, volta a pender para o lado esquerdo. Evoco o divino surdo de Bona logo depois de este saber que Napoleão, traindo a Revolução, se proclamara Imperador. Imagino-o num impulso de cólera, riscando a dedicatória que, na partitura da sua Eroica, havia feito ao corso intrépido, de pronto a substituindo pela acrimónia de um epitáfio mordaz: À memória de um grande homem. Tremendo Ludwig, este! O mesmo que, perante um qualquer príncipe Lichnowski, ousa proferir, no auge da insolência, as célebres palavras imortais: Príncipe, o que és, és acidentalmente por nascimento; o que eu sou, sou por mim mesmo. Príncipes existem e existirão aos milhares, Beethoven há apenas um.
Eis porque entre mim e o Carlos Otero desde cedo se instalou, presa a uma dúvida inquietante, a mais benévola e divertida contenda que imaginar se possa. E, por isso, ainda hoje disputamos, cada qual em seu campo, a primazia do génio para os dois gigantes do nosso contentamento.
Há tempos, quando o Carlos, sempre com vista para a Califórnia, estacionou na Piscosa para a costumada vilegiatura nos meses que abrem o Estio, alvitrei-lhe que este nosso despique poderia muito bem ser visto como mais um daqueles prélios imaginários entre Benfica e Sporting que povoam os domínios da criação artística, e daí que projectasse trazê-lo à liça na crónica do mês passado. Tal como eu benfiquista, logo o meu excelente amigo anuiu ao cotejo; mas torceu o nariz assim que lhe pretendi pintar de verde e branco o seu Wolfgang. Mais ao austríaco do que ao teutão conviria, a seu parecer, o título definitivo de Glorioso…
Esqueceu-se, claro está, de uma prova que não saberá agora refutar: não fosse o Núcleo Sportinguista de Sesimbra a emprestar-nos umas quantas cadeiras da sua esplanada, e muita gente teria ficado de pé, sem arredar o dito, naquela tórrida noite de 6 de Julho de 2013 em que, Conversando com Mozart, fez transbordar a Casa do Bispo! Uma entre tantas datas em que o Carlos, dadivoso, tem trazido a Sesimbra a magia mitológica da musa Euterpe...
Indo mais, como vai, pelo trilho do mestre de Salzburgo, este emérito parisiense ancorado na Pedra Alta será, a bem dizer, um pagão, preso àquelas colunas que orgulhosamente resistem de pé por entre as ruínas do tempo, e que o pintor Hubert Robert, primeiro director do Museu do Louvre, tão bem soube dar no lídimo classicismo das suas telas. Vale a pena ir vê-las às Janelas Verdes e ao Museu Calouste Gulbenkian, senhor que as deixou por cá…
Destarte, não admira que o Carlos tenha ido morar para a pacata Rue Vignon – rive droite, claro está! –, no coração do neuviéme, a um passo da Madeleine e a dois das Tulherias, com o Palais Garnier a lembrar, ali bem perto, a pulsão operática da sua carreira artística. E eu, que me converti sem um módico de resistência ao credo jeóvico e tonitruante de Ludwig van Beethoven, porque agora vos escreva pela manhã do Cinco de Outubro, saúdo-o à sombra da Assemblée Nationale, como bom prosélito do culto novo que veio com o Velho Testamento. Faço-o do outro lado da ponte, fincado na margem esquerda da Concórdia que sempre haverá entre nós.
Pagão! Foi Pinto Quartim, insigne plumitivo anarquista, quem, num baptismo de fogo, assim o crismou pelo meado da década de cinquenta em Lisboa. Na verdade, Adolfo Alonso Otero, antes de entrar no Nicola, tinha por hábito incumbir o filho de pagar os cafés tomados na mesa da tertúlia. Impagável, um dia Quartim não se conteve e, para surpresa geral, proclamou, alto e bom som, perante o garçon: - Este é que paga, este é que é o pagão!
Quase nascido com o século em Padrenda, província de Ourense, no rincão saudoso da Galiza, e cedo emigrado, com seu pai, posto a contas com os poderes carlistas, para terras de Vera Cruz, este Adolfo Alonso Otero, cujas veleidades socialistas o levariam a conhecer, aos dezoito anos, o segredo de uma cadeia brasileira, viu-se depois deportado, ainda jovem, para a Ilha da Madeira. Clandestino, dali fugiu, a bordo de um navio, para o continente, terra da promissão onde, durante sessenta anos, irá viver com o falso nome de Carlos Silva. Sob o múnus modesto de alfaiate, ofício que o leva a trocar fatos por esculturas com o depois famoso Hein Semke, persistirá, no entanto, o avançado libertário, o bravo sindicalista, lutando ao lado de um Alexandre Vieira ou de um Carlos Santos pela jornada diária das oito horas de trabalho. No mais, torna-se convivente de Pessoa, Aquilino, Ferreira de Castro, Raul Rego, Ramada Curto, Ruy Coelho ou Silva Pereira, entre tantos outros, sobremaneira se revelando dotado para a arte de Talma, a ponto de representar, numa só noite, no Teatro da Trindade, a trilogia de Raul Brandão, assinada pelo grande Alves da Cunha.
Corria o ano de 1963 quando o Carlos, refractário ao espectro horroroso da Guerra Colonial, foi de abalada para Paris, levando consigo os genes da grande centelha que ali, subindo a corda a pulso firme, o acompanhariam, num trajecto do maior mérito artístico, como actor, encenador e cantor lírico.
Em Paris, como, de alguma sorte, já aqui sugeri, costumo quedar-me pelo lado esquerdo, na avenida a que o General Leclerc, libertador da cidade nazi, viria a dar o seu nome, ali para as bandas da praça Denfert-Rochereau, sorte de Bastilha no contraponto das margens cujo leão de Belfort, símbolo de resistência, silente no cobre de Bartholdi, qual esfinge dos insurgentes, testemunha a partida das manifestações políticas.
Bruscamente, no Verão do ano passado, fiquei porém com certa demora pela Rue Vignon, em casa do Carlos, onde bem à vista fui encontrar um busto de Beethoven, proeminente no lugar cimeiro que a decoração da sala-de-estar lhe destinara. De Mozart, nem sombra de vestígio…
Quando, triunfal, o confrontei com o sucesso esclarecedor, o Carlos, imperturbável no sorriso luminoso por que sempre a alma lhe toca o olhar, limitou-se a desfiar-me a litania piedosa com que, em Sesimbra, tantas vezes me tem procurado converter:
– Sabes, um dia perguntaram a Rossini qual era para si o maior compositor. E ele respondeu: – Ah, Beethoven, claro está! Perante isto, insistiram: – E Mozart? –Ah, Mozart! Mas esse é o único!!!...
Pedro Martins