AS CRÓNICAS NO «RAIO DE LUZ»: ABRIL DE 2014
Filho pródigo
O meu pai perguntou-me: – Mas tu sabes com quem é que te estás a meter?! Com efeito, não sabia. Não tinha a mínima noção da glória humilde resguardada na reserva singela das duas iniciais – R. M. – que rematavam o artigo, intitulado «Herman e los Hermanos», que me tinha motivado a carta, dirigida, com pedido de publicação, ao director do jornal. Falo, está bem de ver, de Rafael Monteiro e do Raio de Luz, no ano ido, e já distante, de 1988. Tinha dezassete anos…
O caso, de aplauso, tivera em Rafael o protagonista; e eu, que viera de aprender, no venerando Liceu Camões, a pretensão científica da História Nova, com o seu privilégio de atenção aos grandes movimentos de massa e aos ditames do geográfico, do económico e do social, insurgi-me, na missiva, de peito feito, face ao gáudio do eremita perante a suspensão, pela RTP, do programa Humor de Perdição, de Herman José, onde este submetera ao anedótico da caricatura algumas figuras maiores da História de Portugal. Foi a minha estreia na imprensa sesimbrense…
À parte a opção do canal estatal, que ao tempo tomei por censória, estava ainda longe de alcançar, com Jaime Cortesão, esse mestre algo desapercebido de Rafael, o equilíbrio concertante da geo-história e da história social com os factos relevados e as figuras singulares que nutrem a crónica épica de uma pátria. Num salão diplomático do Brasil, torrão imenso para onde Salazar o banira, o maior português do século XX, o lúcido, lídimo poeta da Divina Voluptuosidade (Pessoa, numa carta a Cortesão, dá-lhe a primazia entre os vates do Saudosismo na geração sequente à de Junqueiro e Pascoaes), o dramaturgo intrépido de Adão e Eva, o preclaro historiador dos Descobrimentos, o subtil exegeta do último Eça, pusera em sentido Fernand Braudel, interpelando o corifeu dos Annales, forçando-o à condescendência de atribuir uns 30 % à liberdade criadora do homem, à possibilidade da intervenção individual na história.
Confessa Cortesão: “Demo-nos por satisfeitos. Não era o caso de regatear sobre os números. Tanto mais quanto julgamos difícil levar o conhecimento às exactidões da proporção, quando se trata de problemas filosóficos. Pois, ao fim e ao cabo, o que se debatia e eu desejava conhecer era a atitude filosófica, postulada pelo professor Braudel em história”. O audaz herói lusitano diz o óbvio num livro cuja grata leitura fiquei devendo à magistral indicação de António Telmo, que o descobrira em Brasília quando por lá andou com Agostinho da Silva, genro de Cortesão.
Quando arrostei Rafael Monteiro, estava longe de suspeitar a longa amizade que Agostinho lhe tributava. Por esses dias dos meus verdes anos em que me afoitei à polémica travada, com seu quê de bravata, com o sublime ermitão, George Agostinho Baptista da Silva estava prestes a render-se ao estrépito mundano das Conversas Vadias na mesma estação televisiva que interditara o cáustico de Azeitão.
O sucesso causou estranheza entre os conviventes do filósofo nas tertúlias castelãs de Sesimbra. Tempos antes de o primeiro programa ter ido para o ar, Agostinho, sob o recorte das ameias, no sigilo da velha casa paroquial, confidenciara a Telmo, Rafael e Reis Marques ter sido abordado para discorrer no quadro da caixa mágica. Declinara, porém, o convite para o discreteio. “Já fechei a loja” – afiançou então aos três circunstantes. Depois, foi o que se viu! Desconcertante, este Agostinho…
Como conto no epílogo de Agostinho da Silva em Sesimbra, estudo histórico e biográfico que dá o título ao livro que venho de lançar em Setúbal com António Reis Marques, essoutro amigo sesimbrense do autor de Um Fernando Pessoa, fui dos últimos a conhecer Agostinho da Silva. Fui entrevistá-lo, com António Ladeira e José Pedro Xavier, para a edição de Setembro de 1993 do Raio de Luz. Estava longe de supor que o lance se volveria histórico. Por mor do acaso, ou do destino – que sabemos nós a propósito? –, a conversa com o pensador, que viria a partir em 3 de Abril do ano seguinte, tornou-se a sua derradeira entrevista de imprensa. Fi-la agora rematar o volume, logo após os testemunhos de Reis Marques, juntamente com duas cartas que Álvaro Ribeiro, condiscípulo de Agostinho e mestre dilecto de António Telmo, escreveu a Rafael.
É sobretudo este um livro sobre os grandes homens de Sesimbra, neles se incluindo os que por ela passaram, ou a ela vieram, que a camonina Piscosa é menos o lugar que se atravessa do que aquele onde se fica. Agostinho à cabeça, como é de justiça, dado o auge de notoriedade que lhe trouxeram os píncaros das antenas, para nele se lhe relatarem os actos, os gestos e os projectos sesimbrenses, numa trama de solidão e convívio onde, além do acastelado triunvirato, também despontam João dos Santos, celebrado médico pedopsiquiatra, um Afonso Botelho, escrevente veraneante de um conto em vilegiatura, o tremendo poder desse nosso filósofo maior que foi Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino em seu destemor taurino, e o presuntivo Joel Serrão, urdindo laudas magníficas como panos de Arrás no remanso campestre da Quintola de Santana. Por eles é Sesimbra o que foi ou o que poderia ter sido.
Assim faço jus à lição de Cortesão. Ergo fosforescências, rasgo vultos luminosos nas paredes sombrias do olvido. Sem esquecer a sentença do Cagica Rapaz, esse fraternal Tó Manel que a Parca, criminosa, me roubou, e que tanto nos recordava serem as pessoas, e somente as pessoas, em sua singular individualidade, a conferir sentido a uma terra. De repente, em Domingo de Ramos, qual filho pródigo, quase vinte anos depois, dou-me conta de que estou de volta às páginas do Raio de Luz…
Pedro Martins